quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Ensaio de carnaval


Esse texto é apenas um ensaio, um ensaio de carnaval, soteropolitanos entendem o duplo sentido.

De acordo com Peter Burke, e outros historiadores culturais, como Robert Darton,  carnaval vem de tempos remotos da modernidade europeia com fortes traços de uma vida reprimida pelos laços do cristianismo, mas que encontrava em dias anteriores à terça-feira gorda e quarta de cinzas, um desabafo contra a ordem, contra os costumes e a moral.

A festa do carnaval é uma das poucas coisas, que agora me vem a mente, como um evento que se preservou quanto sua ideologia durante tantos séculos. Pois até aos dias de hoje, embora a sociedade não seja mais controlada pela igreja, ainda se mantem uma festa que se caracteriza pelo transgredir, no caso transgredir contra ordem burguesa.

O carnaval é transgressão, não se pode pensar outra coisa sobre essa festa. Antes a libertinagem contra os mandamentos religiosos, hoje, ainda uma libertinagem contra a moral burguesa (em parte de valores cristãos).

No carnaval antigo, ainda na Europa, as práticas pecaminosas e até mesmo criminosas eram frequentes, e às vezes ficavam sem receber punição, pessoas matavam indiscriminadamente animais (a exemplo do massacre dos gatos), fornicavam, roubavam seus patrões, blasfemavam contra o clero, se embriagavam e até vandalizavam o ambiente.

No carnaval atual, por atual me refiro ao carnaval brasileiro, do século XX e XXI, há ainda a embriaguez, o uso de drogas ilícitas, libertinagem sexual, pouca preocupação em manter a ordem das coisas, como era antigamente, a busca pela inversão de valores.

O carnaval atual, em toda sua atratividade, vidrou os olhos da burguesia bem comportada. Antes expressado pelos negros (uso o termo negros, pois embora não se possa dizer que há apenas negros nesse carnaval transgressor, foram os negros saídos da escravidão, com suas religiosidades, que melhor mantiveram o carnaval contra a religião e a moral da elite brasileira) com o seu batuque, seus blocos de rua e escolas de samba. Então esse mesmo tipo de carnaval brasileiro passou a ser frequentado por pessoas da classe média. Essas, em busca daquilo que o carnaval oferece de melhor, liberdade da ordem, transgressão.

Contudo, o burguês não deseja, mesmo no momento que busca a transgressão, a perda de seu status, assim, ele entra para o carnaval a fim de controlar a desordem e manter uma desordem em que ele possa se preservar, manter os negros no controle, como sempre vigorou, desde o tempo da escravidão.

Tomemos o carnaval baiano soteropolitano por exemplo. Os blocos de rua passaram a ter o controle e supervisão do Estado. Mas de acordo com a visão de Burke e Darton, um carnaval controlado vai contra o seu sentido. O carnaval burguês soteropolitano é uma não transgressão, ou seja, não é carnaval. Tudo bem, estou sendo radical, pois, embora controlado, nesses blocos burgueses, há uso de drogas, sexo livre e outras ações de desobediência às leis civis.

Ainda assim, o burguês trouxe o carnaval para o policiamento. O ato da prefeitura em legislar sobre como deve funcionar o carnaval é uma maneira de diminuir o espírito de transgressão. Quanto que, o carnaval dos negros mantendo uma desordem, preservou-se como o período de berrar alto contra o policiamento da vida civil.

Em Salvador, especificamente, há uma forte expressão desse carnaval, e não apenas no período tradicional da festa, mas todos os dias com suas bandas de música popular (pagode, samba, arrocha, sertanejo, forró e outras), músicas com letras de teor transgressivo, são tocadas todos os dias nas ruas, nos carros, nas festas de fim de semana. Esse carnaval transgressor, em Salvador, ultrapassa a quarta de cinzas e segue até a terça gorda do ano seguinte.

Como esse texto é um ensaio, não terei como ser justo com as bandas que promovem as músicas de carnaval (entenda-se, de transgressão). Mas apenas para marcar dois grupos que, por hora, me vêm à mente. Igor Kannário, com um carnaval bagunçado, um carnaval livre, ou seja, um carnaval, puxando um bloco sem corda (soteropolitanos entendem), sem preço, para todos que querem extravasar.

Por hora, para expressar esse momento carnavalesco, deixo aqui a letra da música de Kannário que transgride a ordem, quando ele diz na música que "é tudo é nosso (dos oprimidos), nada é deles (a elite)".

TUDO NOSSO E NADA DELES https://www.youtube.com/watch?v=Da7SnIZUiV4

Não bata de frente não,

Você sabe qual é meu plantão

O bonde é pesado fique ligado

Quando eu passar você vai ver


Não tô de bobeira, se der mole, eu levanto a poeira

Não brinque com a mente e cole com a gente

Que aqui a chapa é quente


É tudo nosso, nada deles, nada deles, tudo nosso

É tudo nosso, é nada deles

É nada deles, nada deles tudo nosso


Tá ligado que eu sou barril

Tá ligado que eu sou barril dobrado

Tá ligado que eu sou barril

Tá ligado que eu sou barril dobrado

Outra banda, que trouxe músicas que excitam uma postura de protesto contra o controle da elite é o Fantasmão, um grupo que usa o pagode com letras que alertam ao burguês que ele pode querer se preparar para bater nos outros no carnaval, para enfrentar qualquer pessoa, mas com todo preparo, ele não sobrevive à um confronto com o grupo oprimido.

ELE DESCE  https://www.youtube.com/watch?v=zVEwXONW_8w

Judô, Box Thailandês, o maninho se acha o tal,

Treinava o ano inteiro para brigar no carnaval,

Ele é forte, é raçudo,

Ele é grande, mais não é dois,

Se der certo na queixada a gente come com arroz.


(REFRÃO)

Ele pode ser alto grande o que for, panca no queixo ele desce

Ele desce,

Ele desce,

Ele desce,

Ele desce,


Ele pode ser alto grande o que for, panca no queixo ele desce

Ele desce,

Ele desce,

Ele desce,

Ele desce,



Judô, Box Thailandês, o maninho se acha o tal,

Treinava o ano inteiro para brigar no carnaval,

Ele é forte, é raçudo,

Ele é grande, mais não é dois,

Se der certo na queixada a gente come com arroz.


(REFRÃO)

Ele pode ser alto grande o que for, panca no queixo ele desce

Ele desce,

Ele desce,

Ele desce,

Ele desce, (2x)


Cadê, cadê o homem?

Cadê?

Cadê o homem?

Cadê?

Cadê o homem?

Cadê?

Cadê, Cadê ? (2x)

Assim, encerro esse ensaio de carnaval, sem lavagem, mas com um desejo de que seja pensado o carnaval como uma festa de transgredir, uma festa que não existe se viver sob os olhos do Estado, mas nesse período, como foi no passado, é quando o estado se omite, o Estado se deixa zombar, se deixa carnavalizar.